Do significado de BOÉMIA ou, da moderação.
14-11-2023
Não vou começar este artigo com uma introdução cliché escarrapachando a dicionarização da palavra ‘boémia’, como se não tivéssemos todos a capacidade de ir ao Priberam consultá-la; porém, ao que acontece com a maiorias das palavras, que aprendemos por indução do seu significado ao testemunhar o seu uso, não me parece que estejamos hoje em dia muito cientes da herança que ela é suposto trazer-nos.
Deixo-vos a minha: boémia é um estado de espírito, uma maneira de levar a vida, ou certas partes dela, um olhar mais leve sobre o quotidiano, que se expressa num ênfase na diversão, na brincadeira, no ócio, no banter, no dolce far niente, na bohéme, entre tantas outras.
Não é, nem nunca foi, sobre apanhar a put@.
Que as substâncias adulterantes de consciência tenham feito parte, desde sempre, da vida boémia, é um dado adquirido. Todos nós estamos cientes da visão romântica do poeta ébrio, da vida e do vinho, para quem o experienciar da vida é demasiado para ele o conter sozinho e acaba a jorrá-lo em verso; as estrelas rock dos anos 60 e 70 viviam sob uma égide de uso e abuso de drogas ilícitas; ainda hoje as notícias de artistas do cinema e televisão que têm de recorrer a clínicas de reabilitação são cíclicas.
Há um lado negro destes fenómenos, também ele sobejamente conhecido, pese embora se tente varrê-lo para debaixo do tapete. As empresas de cerveja fartam-se de se tentar desresponsabilizar desse lado, recordando-nos constantemente para beber com moderação, porque sabem que as consequências são funestas. Há muita gente cujas vidas são tragicamente marcadas pelo abuso de álcool, tabaco e drogas. Então exige-se a pergunta:
Por que diabos se insiste na glorificação do consumo desabrido de álcool no seio tunante?
Quem me conhece sabe que estou longe de ser um abstinente. Aqui me confesso um apreciador, embora iniciante, do vinho, da aguardente e do uísque. Há pouca coisa de que eu goste mais na vida do que estar rodeado de amigos, a cantar e a tocar, acompanhados de um copo. Isto é uma imagem para mim limpa da Tuna, uma imagem romantizada, sim, mas também real, que eu já testemunhei em muitos e variados lados.
Desse ponto até Tunas, muitas delas com personalidade jurídica, a representar instituições de ensino superior, instigarem Tunas a entrarem em competições de borracheira em troca de prémios de nomes duvidosos, vai um caminho muito longo e pernicioso. Eu pergunto: o que aconteceu? Não sabemos distinguir o ato do intuito? Perdemos o significado do que é ser-se boémio? Desde quando é que a boémia é uma competição? E desde quando é que se acha que o divertimento de um festival e o nível de álcool no sangue estão diretamente relacionados? Quando é que se perdeu a noção?
A minha Tuna já os ganhou e já os perdeu. Já os jogámos e já houve alturas em que não quisemos saber. Posso dizer que em muitas dessas vezes mais por respeito para com a Tuna anfitriã, querendo respeitar o espírito que quiseram verter no seu festival (sabendo também que muitas das vezes há patrocinadores por trás), mas também por carolice nossa, querendo efetivamente jogar esse tipo de jogos, quando a coisa ainda não está perto de virar. Não há nada de errado com isso. Mas podemos sempre fazê-los nós, deixar à Tuna regar o seu convívio como lhe aprouver. A linha, para mim, desenha-se não entre ter e não ter álcool, mas entre glorificá-lo ou não. Fazer dele a crux de um encontro, convívio ou festival, ou mesmo um convidado de honra a ser conquistado, é onde começa o erro. A cerveja é para ser um condimento, a usar com mão leve, e não o ingrediente principal a consumir.
A minha mãe diz-me uma coisa que eu gosto de relembrar de tempos a tempos, e partilho-a aqui convosco: tudo o que é demais é erro. Há outros ditados: nem tanto ao mar, nem tanto à terra; nem oito, nem oitenta; etc… Em abono da moderação, cabe-me dizer que, mesmo nesta questão das bebidas, podemos ser moderados: há atividades e atividades. Um rali em que o primeiro a cair leva o prémio não é igual a uma “corrida de estafetas”, em que cada um bebe uma cerveja, e o primeiro conjunto a acabar ganha. O primeiro julga a quantidade, o segundo julga a rapidez; não são iguais. Se queremos ir por essa via, há tantos caminhos que não o da quantidade…
E quando se ganha, o que acontece? É uma glória? Somos superiores? Deveremos usar esse emblema na capa, em igual importância com os prémios de palco? Ou, pelo contrário, deveremos vê-lo pelo que é: uma maneira de estimular o consumo de álcool, ou então uma brincadeira só para animar a coisa. Não é uma honraria. Não é um atestado de uma Tuna que é mais Tuna, nem uma Herança Boémia dos artistas da viragem do século, dos Pessoas, do Gainsbourgs e das Joplins. É só a ingestão de álcool. Nada mais.
À semelhança da Editorial desta semana, este artigo de opinião, assumidamente pessoal, vem questionar só e apenas o valor que se está a dar a estas dinamizações. Valerá assim tanto a pena querer ser a Tuna que mais bebeu? Isso muitas vezes só indica qual é a Tuna cujos membros estão mais dispostos a gastar dinheiro em cerveja… São “prémios” que não são nada. As Tunas são livres de promoverem o que quiserem nos seus festivais, e as Tunas convidadas são livres de participarem se quiserem. O meu repto é só este: qual é o objetivo disto? Questionem isso para vocês mesmos antes de decidirem pôr as Tunas a competirem para beber a maior quantidade de álcool possível. Com sorte, nem se precisará de falar sobre consequências de saúde nem da potencial diminuição da qualidade do espetáculo de Sábado: a falta de um propósito válido em si bastará.
José Pedro Rodrigues