A Tuna Prescritivista (I)
29-03-2022
Em linguística existem dois grandes modelos de trabalho diferentes, nascentes de uma divisão profunda na maneira como se olha para a língua: o prescritivismo e o descritivismo. A primeira diz como deve ser, e é a componente que está mais ligada aos manuais escolares e aos Acordos Ortográficos desta vida; a segunda explica como é, e é a que olha para a língua mais com um olhar típico das ciências naturais que tenta compreender e descrever os seus fenómenos naturalmente ocorrentes.
Muita da celeuma que nasce, por exemplo, da questão do Acordo Ortográfico 90, em vigor em Portugal desde 2010, advém do cruzar desses dois modelos, em que a visão científica vem informar a visão normativa. A língua muda e evolui de forma orgânica, e para que a questão visual (a escrita, a única em que o Acordo veio mexer) da mesma não se afaste demasiado daquilo em que a língua (falada) se tornou, volta e meia mexe-se nessa convenção social que a ortografia da variante europeia da língua portuguesa é.
Ou seja, essa celeuma nasce, no fundo, de uma ignorância profunda da realidade linguística. Nem vou falar sobre os dialetos e a sua relação com o padrão, nem o facto de se chamar línguas diferentes ao mesmo sistema inteligível dependo do lado da fronteira que fica, nem dos nomes que se dá a tudo isto e o influenciados que são pela sociedade que os usa... Abundam questões sociais e políticas relacionadas com algo que tentamos domar mas que é no fundo indomável, porque se cria e rege à sua orgânica vontade: a(s) língua(s) que falamos. O facto de termos de escrever para os outros entenderem é a única coisa que importa, no fundo, para estas questões de acordos e sistemas de escrita, mas a língua no seu estado puro, vivo e natural é muito mais que isso, e desprendida de tudo isto é ela quem manda em nós, que somos também mandados por ela, numa relação simbiótica de feedback loop eterno: a maneira como ouvimos influencia como falamos, e como nós falamos impacta quem nos ouve, etc.
Assim como a língua, a Tuna. Serve esta introdução alargada para pôr em evidência uma perspetiva diferente daquela que costumamos ter com estas coisas da Tuna. Eu estava a ver um vídeo sobre música renascentista que aborda como ela foi mudando ao longo do tempo, e apercebi-me de repente da dissonância que há entre a maneira como olhamos para a música de fora da Tuna e dentro da Tuna: preocupamo-nos tanto com coisas em último caso inconsequentes, como os trajes que não sei quem adoptou, ou o modelo do festival que X passou a usar, ou coisas igualmente... banais, no fundo, e tão pouco com outras de maior relevo e profundidade sobre o que é a música de Tuna. Estou cansado da discussão sobre a validade do uso do saxofone ou do trompete ou do xilofone em contexto tunante, não porque não é importante, mas porque é vazia de conteúdo, e é vazia de conteúdo porque assenta, no fundo, em nada de concreto sobre o carácter musical da Tuna enquanto tipo de música.
E tudo isto está ligado ao facto de pensarmos sempre numa perspetiva prescritivista, que diz como deve ser, quando a descritivista praticamente não existe. Como é que nos podemos atrever a dizer como deve ser se não temos noção de como é, foi ou tem sido, na realidade? O contexto temporal das Tunas é da mais elevada importância para esta discussão. Uma das visões atuais olha para a Tuna puramente como uma agremiação musical sem grandes responsabilidades históricas, e isso é saudável porque é um desprendimento das noções puramente míticas do que é uma Tuna, que merecem ser desmontadas e analisadas para serem confirmadas ou desmentidas; mas podemos efetivamente olhar para a introdução de um género musical, ou de uma adaptação incomum, ou a inclusão de um instrumento diferente como anómalas - desde que saibamos com propriedade que é anómalo, e não apenas que o sintamos com base na nossa limitada experiência, porque essa é por omissão incompleta e acrítica, e portanto constitui-se como imprópria para a geminação de uma reflexão crítica digna do seu nome.
Depois de assumirmos essa atitude humilde de incapacidade perpétua de conhecer tudo, será também então saudável mudar a maneira como concretizamos o nosso julgamento - não como uma correção que merece ser feita à Tuna com o elemento anómalo ("está mal, isto não é uma Tuna"), mas apenas como uma constatação de tal: "olha, esta malta usa X, nunca tinha visto".
Para além de não incorrer numa frase potencialmente censória, que podemos todos assumir à partida ser uma coisa boa, permite incluir esse detalhe novo na nossa visão da Tuna e voltar a considerá-la. Pensar desta forma permite-nos desde logo deitar abaixo velhas barreiras e reavaliar certas ideias, permitindo-nos focar no que realmente interessa: a Tuna enquanto expressão cultural e artística pura, sem regras pré-fabricadas e pouco testadas, nem fantasmas de um passado que não se tem a certeza se existiu ou não; sem polícia nem tribunais. Isso será o início de uma certa libertação da Tuna, quase como um novo Abril que tanto gosto temos em cantar mas não em pôr em prática entre nós; dos frutos dessa liberdade discorrerei na próxima crónica.