E os Limites da Tuna, Debatem-se?
20-02-2022
É contente que vejo a agenda tunante deste semestre a diferenciar-se da do anterior, onde apenas alguns festivais, ainda em formato remodelado, conseguiram reaparecer. Em 2022 teremos já festivais cada vez mais próximos daquilo que nos é familiar: com contacto, convívio e vozes livres, pese embora venha a subsistir alguma ponderação, o que é natural; natural não seria se de uma pandemia que vai a cumprir 2 anos, com os confinamentos e restrições que se sabe, não se tirasse algumas lições, nem que seja em formato de cautelas novas que não havia.
Já na anterior crónica aventei que, pese embora uma herança do hiato, veríamos algumas alterações à forma dos festivais e ao funcionamento das Tunas em si, impulsionadas por uma mudança forçada que se sobrepôs ao conservadorismo das Tunas e abriu portas a outras mudanças, e pergunto-me se estas se esgotarão na forma, e se não veremos também novidades no conteúdo apresentado pelas Tunas, nomeadamente a nível da escolha repertorial e de apresentação. Talvez dois anos depois já estejamos dessensibilizados, mas o impacto dos confinamentos foi profundo - lede esta frase de novo.
Convém não esquecer, porém, o aspeto tradicionalista das Tunas. Aliado ao paradoxo que existe no facto de a Tuna, manifestação cultural mais premente da classe civil estudantil, tradicionalmente progressista e irreverente, ser centrada num modelo profundamente conservador e avesso à mudança, replicado quase ad nausea - (paradoxo esse cuja exploração ficará numa futura crónica), está o modelo do Festival de Tunas, também ele copiado até fazer doer a mão. Talvez nem toda a gente partilhe desta opinião, mas eu sinto que os festivais de Tunas estão pejados de mesmice a mais. São sempre as mesmas Tunas, sempre o mesmo repertório, sempre os mesmos prémios, sempre o mesmo modelo...
Onde está a irreverência? Onde está o alavancar da mudança? Onde está o rasgar com o que já foi feito?
Onde está o espírito crítico?
Antes que a comunidade tunante comece a atirar-me pedras (e já devo ir tarde no texto para isso), e para equilíbrio do texto, eu confesso-me já: pendo para o tradicionalista, ainda que mais no aspeto repertorial do que noutros. Acredito que a Tuna se apresenta como um veículo novo para uma ideia velha, a da preservação e atualização de uma certa maneira de ver o mundo. Queira-se ou não, e independentemente de raízes históricas, as tunas são hoje em dia muitas vezes parceiras dos grupos folclóricos na vontade de resgatar de um voto ao olvídio temas, ideias musicais e até instrumentos que são manifestações culturais das sociedades rurais que rodeiam a universidade que lhes serve de sede. Decerto haverá razões sociológicas para isso, e isso é saudável e bonito. Porém, isso não deve significar um marasmo monótono em que só se tocam serenatas, marchas e música popular, ou, deus nos livre, manifestações saudosistas dos "descobrimentos" - quando é que a Tuna finalmente larga essa gosma bafienta? Já vai sendo hora.
Não estou a dizer que uma Tuna deva lançar o traje às favas e rasgar as pautas do repertório e passar a apresentar-se de calças de ganga a tocar só o arranjo orquestral da Pictures at an Exhibition do Mussorgsky, mas digo sim que poderia, se quisesse. Nem tem de ser a Tuna da Faculdade da Universidade da Capital do Distrito a fazê-lo. A questão aqui é: porque é que a Tuna não pelo menos pondera rasgar com o estabelecido, e se limita e castra a si própria? Falo em parte contra mim, mais uma vez, um verdadeiro Velho do Restelo que quer tocar coisas tematicamente mais próximas ao que se espera de uma Tuna, mas também sei o que a minha Tuna teve de rasgar com a tradição para ela fazer sentido, e o que vai continuar a fazer para que a ideia que lhe deu génese continue a ser o caminho em frente, sem deturpações nem facilitismos.
Há um meio termo, e está aqui a questão fulcral deste texto. Ao contrário do humor, cujos limites são dogmaticamente recusados pelos seus artistas, os da Tuna são sublinhados e delineados com afinco a cada ano por quem vai surgindo. Só que esses limites são grosso modo uma ficção, e estamos sempre a ajudar a gravá-los mais fundo ainda sem os questionarmos - são aqui? São estes? Porque não aqueles? De onde vem isto? Quem diz!? - Não; ao invés, anuímos com cerimónia e ajudamos a preservar em âmbar uma coisa na qual não acreditamos, pelo menos não com a luminosa fé de quem procurou em si mesmo a resposta para as perguntas que deveriam ser sempre feitas. Há um universo a explorar de que a Tuna pode, e deve, servir-se, desde que munida do espírito crítico de que o estudante sempre foi símbolo como bússola. Assim se torna o equilíbrio entre essas duas vertentes não só possível, como desejável. Eu por mim faço disso objetivo.
Não temos de ser todos iguais nem todos diferentes, a cada um(a) caberá procurar em si a toada que deve servir de mote. A minha é tradicionalista de um modo mais abstrato, e narrativa na forma. Outros quererão uma imagem mais colada ao passado - e ambas são potencialmente igualmente válidas. Tal como os diferentes trajes, ou falta deles, são válidos, tal como tocar música balcã ou anglófona. Tudo é potencialmente válido, faltando apenas uma resposta ponderada à pergunta que se tornou meme na minha Tuna: qual é o objetivo disto?
E será essa a minha esperança para o futuro, e é o que terá de mais entusiasmante a agenda tunante dos próximos tempos: essa possibilidade do diferente, de que as reflexões que as tunas foram sendo obrigadas a fazer ao longo destes dois longos anos, uma verdadeira travessia do deserto, tragam uma maneira remodelada, e quiçá melhor, de viver a Tuna, sem perder o que lhe sabemos ser essencial, porque é como diz o povo: parar é morrer. Pois, não morramos.
José Pedro Rodrigues