
Carta Aberta - e fictícia - ao estulto Deão
"Ex.mo Sr.Um tardio correio trouxe-me ontem um número, já quase velho, das tunantisses, com um ?post em que V. Ex.a., resmungando e rabujando, se queixa ao público de que eu e os meus amigos implicamos consigo, sempre que isso vem a talho de fouce, e lhe assacamos aleivosias. Como exemplo deste indecoroso hábito, cita V. Ex.a. um período da minha carta à comunidade tuneril, em que eu alegremente me rio dos discípulos do negacionismo tuneril que, depois de clamarem contra certos escritores, como realistas e chafurdadores do lodo, apenas imaginam que o público só esse lodo apetece, para seu consumo intelectual, se apressam a escrever na capa de seus livros: romance "realista", para que o público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles, e os leia também a eles... E V. Ex.a., meu caro confrade, acrescenta logo com a mais consciente certeza: ?Ora isto é comigo!?Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.a. descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda na internet... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: ?Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo!? Que diria V. Ex.a., meu prezado confrade?V. Ex.a. balbuciaria aturdido: ?Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais tênue, remota intenção...? Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.a. E assim eu digo. V. Ex.a. deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos meus livros; se V. Ex.a., para atrair a multidão, nelas colou ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista ? por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance negacionista ? então decerto aquilo é consigo. Mas a intransigente verdade me força a confessar que, escrevendo esse período da carta a Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjeta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos ?não ?é ilustre na literatura tuneril ? teria escrito o nome todo de V. Ex.a., sem omitir um só título. ?[...] Assim o exemplo aduzido por V. Ex.a., para demonstrar o meu escandaloso hábito de implicar consigo ? é realmente mal escolhido. Mas permanece, todavia, a queixa, feita ao público com tanta rabugem e tanto azedume, de que ? eu e os meus amigos, sempre que isso vem a talho de fouce, lhe assacamos aleivosias.Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e único dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa ? ?maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.? Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Ex.a. quer muito simplesmente queixar-se de que eu e os meus amigos o não consideramos um ?tuno tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras tuneris como o costumam considerar os amigos de V. Ex.a. Ora aqui V. Ex.a. se ilude singularmente.Eu nunca tive, é certo, a oportunidade deleitável de apreciar, nem em copioso artigo, nem sequer em curta linha, a obra de V. Ex.a. Mas sou meridional, portanto loquaz. Por vezes, entre amigos e fumando a cigarette, tem vindo ?a talho de fouce? conversar sobre a personalidade literária de V. Ex.a. E, louvado seja Apolo aurinitente, sempre me exprimi sobre o autor do Esqueleto, de um modo que é irrecusavelmente mais digno dele e da sua obra, do que esse outro estranho modo por que o costumam decantar aqueles que se ufanam, já na reitoria, já na internet, de serem seus amigos e seus discípulos.Porque eu, falando de V. Ex.a., considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte de composição, a fraqueza ou força do seu traço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Ex.a. o ardente satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia, o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular. E os seus amigos, esses, admiram apenas em V. Ex.a., secamente e pecamente, o homem que na Península Ibérica Tuneril conhece mais termos do dicionário!Sempre, ?a todo o talho de fouce?, em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, V. Ex.a. é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado ? como o grande homem do vocábulo, esteio forte de prosódia, restaurador da ordem gramatical, supremo arquiteto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de V. Ex.a. o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante! E isto tão obstinadamente murmurado ou clamado, que esta geração mais nova, para quem já vou sendo um velho e V. Ex.a. quase um fantasma, não tendo como eu e os do meu tempo rido e chorado sobre os seus livros de paixão e de ironia, o imaginam a V. Ex.a. um intolerável caturra, de capote de frade, debruçado sobre um sebento léxicon, a respigar termos obsoletos para com eles apedrejar todos os seus conterrâneos!A V. Ex.a, crítico sagaz de si mesmo, melhor compete avaliar o que, neste vale de prosa e lágrimas, tem feito para merecer que os seus amigos, como os amigos de César no dia das lupercais, teimem em lhe enterrar até aos ombros esta dupla e pesada coroa da vernaculidade e da descompostura.A mim só me compete lamentar que a estas mofinas proporções tenha sido reduzida, pelo zelo crítico dos seus amigos, a larga individualidade que nos deu a sua Carta ao Reitor. Mas ao mesmo tempo adquiro o direito de rogar a V. Ex.a. que, quando se queixar aos ventos e ao?s decanos? das pessoas que implicam consigo, como V. Ex.a. diz, ou que desdouram a sua glória, como eu traduzo, não se volte para mim e para os meus amigos ? mas olhe em torno de si para os seus admiradores, e para dentro de si mesmo, talvez.A guerra de realistas e negacionistas tuneris, causa primordial destas explicações, tornou-se já quase tão desinteressante e cediça, meu prezado confrade, como a guerra dos clássicos e românticos, a das Duas Rosas, ou essa outra que, para vantagem única dos livreiros que editam Homero, dous povos semibárbaros tiveram a paciência de arrastar dez anos em torno de uma vila da Ásia Menor murada de adobe e tijolo. Renovar tão antiquada guerra nas gazetas facebookianas online, é já um ato imperdoavelmente provinciano; mas mais provinciano ainda é estarmos nós aqui, com grãos de incenso nas mãos, e pedras nas algibeiras, fazendo, através do grande mar, mútuas e lentas mesuras. V. Ex.a., de lá, dentre os seus sinceros arvoredos andaluzes, ajanota as suas frases pelos figurinos de Filinto Elísio, para me dizer gaguejando, e com agridoce generosidade: ?O meu caro amigo tem muito talento, com exceção de escrever muita tolice?. E eu de cá, mais pérfido, porque habito a realidade, grito sem gaguejar, e com polida efusão: ? ?E o meu caro amigo tem ainda muito mais, sem exceção absolutamente nenhuma?.É infantil. Antes desperdiçássemos o nosso tempo, preguiçando patriarcalmente, neste doce frio de Outono, sob a figueira e a vinha... Mas quê! V. Ex.a., que estava brincando funebremente, a fazer no soalho, com tochas de fósforos, uma procissãozinha de moribundos, ergue-se de repente, corre para o público, mesmo sem tirar o babeiro, e acusa-me, entre lágrimas de furor, de estar sempre a implicar consigo! Que havia eu de fazer, eu inocente e justo? Corro também para o público, mesmo de jaquetão de trabalho, e brado profusamente com as mãos sobre o peito: ?Nunca! É falso! Jamais impliquei com ele, e não lhe quero senão bem!?A culpa de toda esta inútil prosa - que não é minha, antes de Eça de Queirós, que aqui não se usurpam direitos autorais - é portanto toda sua; e para que ela se não prolongue mais, apresso-me, prezado confrade, a dizer-meDe V. Ex.a.Sincero e seu ?não ?admiradorRT
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