Conversas de Verão com Nuno Franco
15-06-2015
P- Como vês, sendo "jurássico", o actual panorama tuneril nacional? Que pontos podes abordar sobre?
NF – É engraçado pensar em mim como “Jurássico”, quando não me considero um fóssil no mundo das tunas, ainda. Apesar de cá andar há quase 17 anos, continuo a ser tão activo quanto me é possível na minha tuna de origem, nomeadamente ao nível da composição das letras e músicas, da intervenção nas decisões mais importantes, na organização de eventos e – sempre que o tempo e a geografia o permitem – também dando o meu contributo nas actuações. Uma piada recorrente na Tuna Universitária de Trás-os-Montes e Alto Douro – Transmontuna, é a de que o Giga um dia vai para a segunda fila. Mas que amanhã não seja a véspera desse dia, digo eu.
Quanto ao panorama tuneril nacional, penso que atingimos um plateau, após duas décadas de rápido e amplo crescimento. Não quer isso dizer que tenhamos estagnado, apenas que em termos gerais atingimos um ponto em que o número de grupos estabilizou e a qualidade média se tem nivelado por cima, se comparada com a de há 15-20 anos atrás. Se quando entrei para a faculdade (1998) havia a nível nacional cerca de 5 tunas num patamar de excelência e umas outras 10 a um nível muito bom, esses números certamente duplicaram desde então. Mais importante ainda, a assimetria entre essas tunas e as demais (habitualmente de academias de menor dimensão) esbateu-se, e há hoje largas dezenas de tunas com um nível de qualidade musical e cénica muito elevado, e que não raras vezes suplantam as ditas tunas de referência em certames competitivos. Faltou dar um salto qualitativo semelhante no que diz respeito às tunas femininas, no meu entender, que apesar de consideravelmente melhores que há uns anos atrás, continuam inexplicavelmente longe do nível das suas congéneres masculinas, em termos gerais, quando se esperaria que por esta altura pudessem ombrear com estas. Mas há várias tunas femininas que oiço com gosto e a esse respeito não posso deixar de dar os meus parabéns às nossas afilhadas da Tuna Feminina da UTAD- Vibratuna, das quais nos orgulhamos sobremaneira.
Há ainda muito que fazer, ao nível da credibilização e dignificação da tuna como património cultural nacional, há semelhança do que ocorreu com o cante alentejano, por exemplo. Ainda não atingimos esse nível de maturidade, mas para lá caminhamos. O ponto de partida será dado quando as próprias tunas portuguesas reconhecerem o quão única é a sua matriz identitária, sonoridade e estética no plano cultural mundial. E alguns passos já foram dados nesse sentido, com os ENTs, a publicação do Qvid Tunae e a separação cada vez mais efectiva das tunas académicas dos autoproclamados “órgãos regentes” da Praxe Académica, micro-feudos de alguns pseudo-iluminados que, ignorantes sobre tudo aquilo que pretendem controlar, não se apercebem do carácter centenário e natureza distinta das tunas. Talvez um dia o percebam, sob pena de caírem (ainda mais) no ridículo.
Para o futuro, espero nos próximos anos um aumento gradual do número de tunas veteranas, quando os protagonistas do boom dos anos 90 ultrapassarem os 40 anos e esse número atingir a “massa crítica” necessária. Se isso acontecer será bastante positivo, pois obrigará a uma renovação geracional por parte das tunas académicas tradicionais, onde ainda podemos encontrar os tais “jurássicos”, como nós.
P - Que diferenças de monta existem, se é que existem, face aos teus tempos de estudante?
NF - Bolonha, a crise e as novas tecnologias vieram mudar muito as coisas. Lembro-me que a maioria de nós apenas se ligava à Internet no campus e com o tempo contado. Eu era muito mais entusiasta das novas tecnologias que a maioria dos meus colegas, na altura (fiz o primeiro site da Transmontuna em 2000), e passava umas duas horas por semana na internet, se muito. Ninguém tinha net em casa, nos telemóveis. Isso fazia com que o único modo de fazer e cultivar amizades fosse nos ensaios, nos cafés, nas saídas. Agora a malta nova da minha tuna junta-se para jogar MMORPGs e comunica pelo Facebook. Há vantagens, claro. É hoje muito mais fácil contactar com outras tunas (lembram-se dos convites para os festivais enviados por fax para as reitorias, ou por carta? E das semanas que demorava ter uma resposta?), organizar festivais, divulgar eventos, etc. Consigo participar em reuniões da tuna por videoconferência, enviar músicas, fazer críticas a actuações, organizar o Festa Ibérica e assistir a festivais por streaming, entre outras coisas. Há todo um conjunto de novas possibilidades abertas por estas tecnologias da comunicação, mas sinto que se poderia fazer mais por cultivar as amizades, desenvolver o “repertório de café” e ensinar os mais novos se conjugássemos o melhor de dois mundos, estando mais presentes, de facto, e não virtualmente. Ou daqui a vinte anos estes miúdos vão-se aperceber que passaram os melhores anos das suas vidas agarrados a um ecrã.
A crise também veio mudar muito as coisas. Há mais pessimismo, menos dinheiro e menos apoios, o que dificulta a organização de eventos e a compra de material. São hoje muitos os alunos que têm um part-time, quando no nosso tempo os trabalhadores-estudantes eram uma minoria, e habitualmente pessoas mais velhas que tinham voltado a estudar. Ficar mais um ano a acabar o curso do que o previsto era sem dúvida chato mas não uma hecatombe financeira, e os alunos sentem muita mais responsabilidade sobre os seus ombros, o que muitas vezes os afasta de actividades extracurriculares. Isto é uma pena, pois a percentagem de alunos que não acaba o ensino superior oscila entre os 30-40%, quando na nossa tuna praticamente todos terminámos as nossas licenciaturas (vários de nós mais do que uma, aliás) e mestrados. Eu fui um bocadinho além e concluí o meu doutoramento e temos ainda mais dois doutorandos, actualmente. Isto daria um interessantíssimo tema para um estudo na área das ciências sociais: determinar os principais factores que contribuem para o sucesso escolar no ensino superior dos alunos que integram tunas e outros grupos académicos. Eu arriscaria avançar com a hipótese que tal se deve, pelo menos em parte, ao modo como fazer parte de um grupo combate a exclusão e forma uma rede de apoio ao aluno, não só do ponto de vista humano e social, mas também ao nível académico (partilha de apontamentos, criação de grupos de estudo, atenção pelo sucesso académico dos mais novos…).
Bolonha também veio alterar o modo como se vê a universidade. Os alunos passam agora menos anos na universidade e há menos tempo disponível (ou pelo menos assim julgam) para actividades extracurriculares. A universidade é hoje apenas mais um patamar académico, mais três anos de estudos após o ensino secundário (da mesma forma que este são mais três anos após o básico), quando antes era visto como uma experiência de vida, onde crescíamos e nos melhorávamos como indivíduos e como membros de uma sociedade. Errando muito (e muitas foram as asneiras, sem dúvida), mas também rindo, criando, inovando, convivendo e desenrascando-nos.
Eu costumo dizer que antes nós “pertencíamos” à tuna e que hoje estes miúdos “andam” na tuna, como se fosse apenas mais uma de muitas solicitações e actividades, e não o epicentro da sua vida social e académica. Posso estar enganado, mas é a percepção que tenho, neste momento.
P - A Música, sendo a matriz da tuna estudantil por génese, teve ou tem para ti que relevância no contexto da tuna?
A música é o Alfa e o Ómega, nas tunas. Ou pelo menos deveria ser. É a principal razão pela qual se constituem as tunas e também o que habitualmente despoleta o interesse dos candidatos às mesmas. A música é ainda um elemento aglutinador, não só porque é um gosto partilhado entre os membros da tuna – que assim encontram um forte elo de ligação entre si – mas também porque é a principal razão pela qual os tunos se encontram e trabalham juntos para um fim comum: fazer mais e melhor música e apresenta-la à comunidade. E há de facto algo de mágico em juntar um grupo de pessoas, com diferentes vozes, instrumentos e sensibilidades estéticas e conseguir harmonizar toda esta heterogeneidade e criar algo de belo.
Mas por vezes até parece que a música é um mero apontamento de rodapé nos ensaios, actuações, deslocações, festivais, quando deve ser o cerne e o fim último destas actividades. Quando isso acontece, e as tunas descuram a sua componente musical, rapidamente desaparecem, se tornam irrelevantes ou cristalizam no tempo, tocando o mesmo repertório durante anos a fio. Poder tocar numa sala cheia de pessoas é um dos principais motivos que nos faz dedicar a esta vida, mas também uma grande responsabilidade, pois essas pessoas podiam ter escolhido outros planos, podiam ter ficado no sofá a ver a novela ou nas redes sociais, mas levantaram-se do sofá, arranjaram-se, deslocaram-se para o teatro e pagaram o bilhete. Se mais razões não houvesse para dar primazia à música (e há), só esta já bastaria.
P - Que caminho ou caminhos vês a Tuna nacional a trilhar?
Já fui dando umas achegas no sentido de responder a esta pergunta. É difícil fazer futurologia e quaisquer planos que tracemos acabam, regra geral, gorados pela realidade, ou suplantados por esta. Posso, contudo, dizer o que gostaria que nos reservasse o futuro. E isso inclui um maior respeito pela Tuna e a sua história; inovação sem desvirtuação da identidade e estéticas próprias da Tuna, que as descaracterizaria; maior intervenção no panorama cultural nacional (e não somente numa subcultura académica), a fundação e proliferação de tunas de veteranos (de carácter regional, talvez?); autonomia plena das tunas de outros grupos que nada têm a ver com as mesmas e maior intervenção social e solidária. E música. Mais e melhor música. Será pedir muito?
Nuno Franco é professor e investigador. Pertence à Tuna Universitária de Trás-os-montes e Alto Douro – Transmontuna desde 1998 (ano da fundação), tendo também sido da Tuna do Distrito Universitário do Porto desde o seu ano de fundação (2005) e Tuno Veterano da mesma, sendo hoje Antigo Associado. Fundou o Grupo de Animados e Irresistíveis Jograis Universitários e Sequiosos (G.A.I.J.U.S) em 2002, organizou o IX ENT e todas as edições do Festa Ibérica – Festival Internacional de Tunas Universitárias.